A Culpa é da Eva

Por Isabela Casemiro

A Culpa é da Eva

É curioso quando começamos a ler a Bíblia e traduzimos suas histórias como contos de fadas. Se você começou a frequentar a igreja na sua infância, pode perceber como somos constantemente tentados a olhar para a narrativa bíblica como harmônica, angelical e sobre-humana. Afinal, as histórias para as crianças passam, e devem passar, por uma “peneira”, mas o quanto perdemos com isso de uma construção teológica de Deus trabalhando em relações humanas reais, que são complexas, absurdas e provocativas.

Nas minhas memórias me lembro da narrativa Davi, Bate-Seba e Urias (2 Samuel 11:1-27). Lembro-me de ter contato com esta história na pré-adolescência, em minha igreja. Pare um pouco, se conseguir leia a história e faça uma imagem de cada personagem. Como você visualiza cada personagem? Que rosto ou personalidade você imagina de cada um?

Eu me lembro de que a figura de Bate-Seba foi trazida quase como uma promíscua. Afinal, o que uma mulher estava fazendo tomando banho num lugar onde pudesse ser vista? Numa pesquisa, observamos que havia um rei ocioso e afastado dos seus guerreiros que batalhavam por ele, que se aproxima de uma mulher casada com um dos seus homens. Havia também uma belíssima mulher que (pelo contexto histórico) muito provavelmente tomava banho em sua casa, em sua privacidade ou se estivesse (como de costume na época) tomando banho nos lugares públicos, estaria vestida. Sobre isso, Nancy Cardoso comenta: “Davi e Urias. Entre eles imaginamos que está Bate-Seba e que ela seria o pivô, a causa das mortes, dos desmandos dos sofrimentos. Ela seria qualquer coisa entre vítima e culpada, seduzida e sedutora que justificaria a avalanche de acontecimentos violentos. Mas o que dizer dos homens do texto, do jeito que se deixam matar e mandam morrer?”

A contextualização e leitura bíblica têm que ser enfáticas: em nenhum momento se fala da intenção de Bate-Seba, mas do estranhamento de Davi não estar em batalha. Isto é tão fundamental, pois se não lermos a Bíblia, não a estudarmos e não analisarmos os próprios contextos sociais e teológicos vamos construir uma narrativa antibíblica, herege e cheia de pretextos para relações de poder, abuso, manipulação e morte.

Provoca-me muito a ideia do quanto limpamos e fantasiamos as histórias bíblicas e não validamos essas relações danosas como relações de poder e abuso. Assim como na narrativa bíblica descontextualizada e maquiada, nós perpetuamos a violência pedindo às mulheres para suportarem suas aflições, orarem por seus violentadores, serem firmes e não permitirem que a família se desfaça.

Afinal, as leituras da Bíblia podem ser anticristãs se trabalham para a manutenção e até crescimento das relações de violência dos mais variados tipos dentro da igreja, das casas e na sociedade. Nada novo, não é mesmo? E, isto vai além das perspectivas hermenêuticas complementaristas e igualitaristas, apesar das duas visões viabilizarem as relações de forma diferente. Meu convite é para uma leitura bíblica teológica que sempre interrogue o texto, que dê voz e vez para as mulheres e minorias para além de um contexto patriarcal.
É interessante que o texto bíblico conclui que a atitude de Davi desagradou ao Senhor, tanto que mais à frente o profeta Natã foi até Davi e o repreende, convocando-o ao arrependimento.

Pastores e pastoras, ministros e ministras, o seu discurso tem sido edificante e libertador, como as boas-novas do Cristo ou ainda parece uma narrativa e convite à vida de conto de fadas? Ao ser informado que uma pessoa sofreu abuso, apanhou, que foi escorraçada em casa, forçada a manter relações sexuais, você pede que esta pessoa ore ou oferece apoio, suporte para que esta pessoa se sinta no direito legal de denunciar o culpado? E se ouvir uma denúncia sobre um abuso que ocorreu dentro da própria igreja, se o culpado for alguém da liderança (como o Rei Davi), você reagirá como voz profética na denúncia (como Natã) ou vai manipular, colocar “panos quentes”? Lembre-se, isso é sobre direitos e deveres de sujeitos, sobre a proteção da vida, sobre lidar com a verdade pelas Bate-Sebas, Evas, Tamars, Raabes, samaritanas.

Convido a igreja de Cristo à oração pelas vítimas de abuso e violência, que suas feridas sejam curadas, seus fardos aliviados e seus corpos abraçados por amor e paz. E assim, que as igrejas se tornem lugares de real libertação, locais de luz e segurança para mulheres e crianças, e arrependimento para violentadores e criminosos.

Violência é crime. Ligue 180.


Fonte:
Breno Lucena Macedo, Texto: “Bate-Seba – Enfrentando Abuso e Assédio em nossos dias”. Blog: Mulheres Piedosas.
Nancy Cardoso, Livro: “Maria vai com as outras”. Editora: CEBI
Projeto Redomas, Texto: “Bate-Seba e o silêncio sobre abuso sexual nas igrejas”

  • Isabela Casemiro

    Cristã, 29 anos
    Bacharel em Teologia pela FTSA
    Psicologa pelo Mackenzie
    Pedagoga em formação pela UNIVESP
    Atuo na Clínica particular
    Sommelier de pipoca e chocolate