Sombras & Luz
Por Joel Marc
Quando criança, lembro-me de que gostava de brincar com a minha mãe a brincadeira da sombra na parede. Costumávamos fazer projeções de alguns animais com as mãos. Era simples: com um pouco de luz e muita criatividade, fazíamos sombras de cães, pássaros, dinossauros e tudo o que as nossas mentes conseguissem imaginar. Aquelas sombras não conseguiam me assustar - apenas me divertiam - uma vez que, mesmo pequeno, eu tinha consciência de que eram apenas sombras e não a realidade. Mas, e quando as “sombras” são a única realidade conhecida?
Platão, no livro “A República”, narra uma alegoria muito interessante que nos leva a imaginar a vida de alguns homens que cresceram acorrentados em uma caverna, onde a única realidade conhecida eram sombras projetadas intencionalmente por meio de uma chama - sem que eles soubessem. Imagine que 10, 20... 30 anos se passaram e tudo o que aqueles homens conheciam eram apenas sombras.
Platão vai além na sua narrativa e descreve a seguinte hipótese: um desses homens consegue se desvencilhar das correntes e fugir da caverna. Depois de longos anos acorrentados ele tem a possibilidade de, pela primeira vez, ver o que existe para além das sombras. Platão descreve que, ao sair da caverna, aquele homem tem de lidar com o grande desconforto de ver a luz. De início seus olhos doem, mas depois de um tempo sua razão é iluminada e ele passa a enxergar a vida como realmente é.
Depois de a consciência iluminada ter avistado a realidade, aquele homem, empaticamente, decide retornar à caverna e contar-lhes a verdade, consciente da responsabilidade de alertar os amigos sobre a existência da Luz revelada. Entretanto, Platão genialmente descreve que aqueles homens já estavam tão acostumados com as sombras e “convictos” de que elas eram a única realidade possível, que não acreditam naquele que vislumbrou a luz - e ainda tentam assassiná-lo. Assim termina o “mito da caverna”.
Algo parecido, simbolicamente, acontece na história da Bíblia, no processo de transição da velha aliança (lei) para a nova aliança (graça). O escritor de Hebreus diz:
“A lei traz apenas uma sombra dos benefícios que hão de vir, e não a sua realidade. Por isso ela nunca consegue, mediante os mesmos sacrifícios repetidos ano após ano, aperfeiçoar os que se aproximam para adorar.”
Entretanto muitos religiosos do tempo de Jesus, em suas diferentes vertentes (tais como fariseus, saduceus, essênios, zelotes etc), cresceram vislumbrando as sombras da antiga aliança – lembre-se de que o Novo Testamento ainda não havia sido escrito - e envelheceram com a consciência cauterizada, sendo que as sombras eram a única realidade possível, e mesmo com a possibilidade de ver a luz (Jo 1), preferiram apegar-se às sombras. Esses judeus citavam as Leis Mosaícas, sabiam de cór os profetas, cantavam e oravam os salmos, mas eram incapazes de ver a essência que essas sombras projetavam. Tinham dificuldade de enxergar e reconhecer que a sombra não existe em si mesma, ela depende da luz para subsistir.
O cenário histórico-social do novo testamento é permeado por essa polarização: de um lado os cristãos-novos que, libertos do "jugo da lei”, enxergaram aquele que é “a luz do mundo” (Jo 8.12); e em contrapartida temos os mestres da lei, que moram na caverna há muitos anos, resistindo à ideia de que existe uma realidade maior do que a lei (sombras). Esses últimos se recusaram a ultrapassar o véu dos santos dos santos - que dividia a consciência entre a obscuridade e a iluminação -, além de construírem um muro na saída da caverna para que ninguém ousasse sair.
Quando o Messias veio, quando a luz foi revelada e foi feito o convite de se achegar ao Trono da Graça com ousadia, estes religiosos legalistas recusaram e disseram: - Não existe Graça, não existe favor imerecido, as sombras são a única realidade possível!
Alguns desses religiosos legalistas, mesmo depois de avistar a luz, se recusaram a viver a transformação de vida que a luz inaugurava. Eles, inclusive, incentivavam os cristãos novos a permanecerem nas práticas ritualísticas da velha aliança, tais como: a circuncisão, a celebração de datas judaicas, comer certos tipos de alimentos e considerar outros pecaminosos, e não dialogar ou ter contato com pessoas apontadas como impuras pela lente das sombras (samaritanos e leprosos, por exemplo). Os adeptos a essa vertente ficaram conhecidos como cristãos judaizantes, e é a respeito deles que Paulo escreve em Colossenses 2.16-17:
“Portanto não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado. Essas coisas são SOMBRAS do que haveria de vir, a realidade porém, encontra-se em Cristo.”
Essa linha de cristãos judaizantes vai ser intensamente criticada por Paulo, que via neles uma grande incompreensão do Evangelho da Graça, alertando que aqueles que caem em suas palavras são como quem “caiu da Graça”, não valorizando o sacrifício de Jesus na cruz - sacrifício que de uma vez por todas cumpriu as exigências da lei e nos justificou.
Infelizmente, no século XXI vemos novamente essa linha de cristãos judaizantes ganhando força - tentando conscientemente ou não, colocar uma “bengala” nas obras realizadas por Jesus, como quem diz: - “A cruz de Cristo não foi suficiente, precisamos ajudá-lo a cumprir as exigências de Deus fazendo isto, guardando esta data, e não comendo aquilo - como regra de fé. E aqui me refiro a igrejas cristãs que voltaram a usar a arca da aliança em suas celebrações, que tocam o shofar como sinal para atrair a presença de Deus, líderes que se apropriam da cultura judaica para se diferenciar das demais ovelhas - usando o talit e às vezes até o kipá. Querem nos fazer voltar às sombras, a viver no medo do desconhecido, à segregação do sagrado e do profano, sendo que Jesus já redimiu todas as coisas.
Se você é alguém que está vivendo debaixo do jugo de um líder religioso que oprime sua consciência a permanecer aprisionada na caverna, eu te convido a olhar para as sombras da velha aliança com a lente de Cristo e ser liberto para enxergar a realidade. Precisamos permitir que a luz penetre profundamente nossa existência e nos faça enxergar que tudo apontava para Jesus, que as sombras eram apenas a prefiguração do que haveria de vir (Lc 24:27 e 45).
Sobre esse cenário eu fico com as palavras do Evangelho da Graça: Foi para a liberdade que Cristo me libertou! E a vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim.
Agora vivo na Luz.
Graduado em História pela Faculdade Sumaré e bacharel em Teologia pela FLAM (Faculdade Latino Americana). Possui Extensão Universitária em História Judáica pela PUC-SP. Após atuar durante cinco anos como livreiro e mergulhar no universo dos livros cristãos, ingressou em 2019 como professor na Escola Pública do Estado de São Paulo. Atualmente é professor das disciplinas de História e Filosofia no colégio cristão Kairós e produtor de conteúdos terceirizados para plataformas de banco de questões modelo Enade, na área de tecnologia.